terça-feira, 6 de junho de 2006

Entrevista com Manuel Sérgio


À CONVERSA COM MANUEL SÉRGIO, O “CATEDRÁTICO DO DESPORTO”

Académica já foi
um clube com alma


Uma conversa-entrevista-conversa sobre alta competição, o futebol português, José Mourinho, a função dos clubes, a Académica e o Belenenses, José Maria Pedroto, os mitos da prática desportiva, a final da Taça de Portugal de 1969, as igrejas e os estádios, Mário Campos, Scolari e... onde também se fala de Jesus Cristo


Conversar com Manuel Sérgio é um prazer. O filósofo esteve em Coimbra há dois meses e concedeu esta entrevista. No ambiente tranquilo de uma sala do Hotel Quinta das Lágrimas, em fim de tarde chuvoso, falámos de muitas facetas do Desporto. Volta e meia, a conversa derivou para a Académica. É notório o fascínio que a Briosa desperta no Professor. Foi por isso que decidimos publicar a entrevista só depois do campeonato ter terminado – para evitar eventuais “más interpretações”.

Manuel Sérgio, pessoa simples, já tem o nome gravado na História. Ele criou um novo paradigma do conhecimento: a Motricidade Humana. As suas ideias vão, a pouco e pouco, fazendo caminho pelo mundo fora: já são várias as universidade que têm faculdades de Motricidade Humana.
Há meses, José Mourinho surpreendeu tudo e todos ao afirmar que Manuel Sérgio era a pessoa que mais o tinha marcado – nem Van Gaal, nem Bobby Robson... O “mestre” principal era o pensador que, aos 22 anos, tendo como habilitações a 4.ª classe, trabalhava no Arsenal do Alfeite.
Foi com este mesmo homem, hoje professor universitário, sempre afável, que estivemos à conversa.

Como vamos de Desporto em Portugal?
Com a profissionalização, o desporto português melhorou. Há um apoio à alta competição que antigamente não existia. Há dinheiro, agora temos campeões olímpicos. Não são muitos, mas já temos alguns... No futebol, permanece uma mentira: assinam-se grandes contratos, mas depois não se paga.


Continuamos a ser o país do futebol...
Continuamos a ser porque já o éramos antes do 25 de Abril. Não mudou nada.

E continuamos a ser um país de desportistas de café e da televisão...
O Desporto não entrou na vida das pessoas, porque não é apresentado como ele é. O Desporto continua a servir para muita coisa... O Desporto é um espectáculo ao lado de outros espectáculos. Há um economicismo que domina toda a vida em sociedade e que também está presente no Desporto. Veja bem que as campanhas a promover o Desporto-Saúde, com a ideia de que o Desporto dá saúde, são promovidas pelas grandes multinacionais de material desportivo.

Felicidade é o primeiro factor de saúde

Depois há quem siga o conselho e acabe por morrer a praticar Desporto...
É verdade. Há quem não possa ser um homem-máquina. A Fundação Portuguesa de Cardiologia só diz mexa-se, não diz corra. Só diz mexa-se!... O problema é este: a saúde é um fenómeno social, político. A saúde não se obtém unicamente porque se corre, a saúde decorre de um país diferente, de uma sociedade diferente. Há uma frase elucidativa, de um médico chamado Victor Franco: “Nós, médicos, passamos a vida a dizer aos doentes que façam exercício físico, não comam açúcar, não comam sal, etc., e esquecemos de lhes dizer que o primeiro factor de saúde é que a vida tenha sentido”. A felicidade pessoal é o primeiro factor de saúde. E depois vêm os outros factores. Como a sociedade não dá saúde, põem-se as pessoas a correr. Embebedam-se as pessoas com essas tretas. A saúde tem de se obter através de uma sociedade diferente.

E quanto ao espectáculo desportivo?
O espectáculo desportivo não está mal. É o espectáculo de maior magia no mundo contemporâneo, as pessoas querem-no. Mas não se pode dar só espectáculos desportivos às pessoas, não se pode apenas embebedar as pessoas com espectáculos desportivos. As pessoas têm de ler, têm de saber. Não se pode apenas publicitar aquilo que as adormece, aquilo que anestesia.

Os grandes jogos, por exemplo...
Os grandes jogos não estão mal, mas não chegam. O Desporto não é mau, o que tem de mal o Desporto são as taras da sociedade – porque o Desporto actual reproduz e multiplica as taras da sociedade. Não é contrapoder ao poder das taras dominantes.

Continua a pensar isso?...
Continuo.

Portanto, valores no Desporto...
Os valores tradicionais do Desporto – camaradagem, generosidade... – encontram outros valores quando se chega à alta competição. Mas estes ‘outros valores’ estão no Desporto como estão na vida. O Desporto de Alta Competição é um dos produtos da sociedade altamente competitiva em que vivemos.

Pequenos clubes tentam imitar os grandes

O seu Belenenses está na alta competição?
Está, então não havia de estar?... Até a Académica!... Todos estes clubes estão em alta competição. Exige-se tudo dos jogadores, não sei é se se lhes paga sempre... Existe dedicação completa, profissionalismo. Mas não sei como é que os jogadores actuais estarão, do ponto de vista da saúde, quando chegarem aos 50 anos...

Se calhar, em piores condições físicas que o cidadão comum...
Não sei. Eles chamam-lhes ‘suplementos vitamínicos’, mas desconfia-se que seja outra coisa. Não sei... O Desporto de Alta Competição, no fundo, está a substituir o sagrado – este amor ao clube é uma coisa interessante. Enquanto os nossos avós (e mais atrás, até desde a Idade Média) nos deixaram igrejas, catedrais, nós vamos deixar campos de futebol, estádios... E a alguns até já lhes chamam catedrais.

Foi a única coisa que o Euro 2004 nos deixou?
Já ouvi altas figuras dizer que foi muito bom para o turismo.

Mas nós, adeptos, ficámos na mesma...
Na mesma, na mesma. É verdade que o espectáculo desportivo pode servir para o reforço da identidade nacional. Há um certo patriotismo que se está a perder e o desporto de alta competição pode servir para combater essa situação. Os jogadores sentem, quando entram em campo diz-se-lhes que vão cumprir algo ao serviço da Pátria.

E a nível local, o clube ainda é uma forma de identificação? Benfica, FC Porto e Sporting têm legiões de adeptos. E os pequenos clubes?... Estão condenados?
Os pequenos clubes pretendem imitar os grandes, mas esquecem-se de que estes, como têm muita gente, sempre conseguem ir vivendo. Mas o Sporting já quer vender quase todo o património, o Benfica praticamente não tem património... Os pequenos tentam imitar os grandes, mas têm muitas dificuldades. Nunca serão equipas para ganhar o campeonato nacional, talvez uma “Taça”...

Académica perdeu ligação à Universidade

Socialmente, os clubes distinguem-se? Por exemplo, a Académica ainda faz sentido como “clube diferente”? Há lugar no futebol profissional para uma equipa com uma filosofia própria?
Ainda há. A Académica, que já foi um clube com alma, comete um grave erro se a perde, porque a alma não pode estar sujeita às contigências. Eu sou do Belenenses, mas... a Académica entrava nos campos em Lisboa e era uma coisa diferente. Porque é que há-de perder isso?

Diferente porque vestia de preto?
Não, porque era diferente. Falava às pessoas de valores que as outras equipas indiscutivelmente não tinham. Até o futebol que jogava era diferente, era um futebol pensado, e via-se que havia qualquer coisa de diferente que unia os jogadores. A Académica perdeu isso e é mau para a Académica ter perdido muitos dos valores, quase que diria estupidamente. A Académica de hoje não pode ser igual à de 40 ou 50. Mas há uma alma, há valores que ainda hoje se podem manter, independentemente do tempo.

Como é que, estando em Lisboa, vê esse perder da alma?
Eu vejo isso porque a equipa já não aparece da mesma forma. A linguagem é outra, vê-se que os valores não são os mesmos através do discurso das pessoas. Antigamente, os jogadores reflectiam a Universidade de Coimbra, quase todos tiravam o seu curso. E havia qualquer coisa de diferente. É evidente que me é difícil, que via as coisas de fora, concretizar mais esta ideia. Mas, olhe!, naquela final da Taça de Portugal, em 1969, a que assisti no Jamor, a Académica reflectia, mais do que uma equipa de futebol, uma contestação ao Governo. Mais nenhuma equipa poderia fazer isso!

E ainda há espaço para uma equipa dessas no desporto profissional?
Claro que há. A Académica pode fazer isso. Aquilo que fez em 1969, assumindo uma atitude, pode continuar a fazê-lo.

Se calhar, deveria estar mais ligada à Universidade, aos estudantes...
Talvez. Não é por acaso que o Professor Queiró, que era um mestre eminente de Direito, era um homem que andava sempre com a Académica. Eu acho que nenhum mestre eminente de Direito anda hoje com a equipa da Associação Académica. Havia uma ligação à Universidade que hoje não existe.

Manuel António, Maló... eram todos bons!

Portanto, como pensador do Desporto, acha que ainda há lugar para uma Académica assim...
Sem dúvida. É claro que a Académica não pode jogar com botas de traves, porque a tecnologia avançou... O que digo é que o espírito que distinguia a Académica, até uma certa consciência política, pode continuar a existir.

Tem pena que não exista?
Tenho pena, logicamente. Não vou dizer nomes, mas hoje a Académica está constituída por um grupo de jogadores que não são Académica. A Académica foi das equipas, em todo o mundo, que melhor soube reproduzir a ideia de que no futebol é possível existir um ideal. Esta Académica perdeu-se porquê?

Poderia continuar?
Absolutamente. Pode ser continuada. A Associação Académica de Coimbra tem a obrigação de fazer do futebol um espaço diferente. Não pode ter claques a tentar imitar as claques do FC Porto, do Benfica ou do Sporting. Isso é uma vergonha, é nivelar por baixo.

A claque da Académica considera-se diferente...
Não sei. Não parece.

O Professor é um belenense que tem como segundo clube a Académica, tal como acontece com muita gente?
Eu digo-lhe com toda a franqueza: eu nasci em Belém, em frente do campo do Belenenses e, por isso, sou do Belenenses. Agora, eu olhava (muita gente olhava) para a Académica como portadora de um conceito diferente, que reflectia cultura, que reflectia política. Perdeu-se porquê? É um caso para os homens da Académica pensarem.

Dava uma boa tese...
Sim, sim. Dava uma grande tese de doutoramento. Uma coisa deste tipo: “Futebol da Académica – reflexo e projecto de uma Universidade”. Qualquer coisa assim, é um caso para pensar. Não faz sentido que a Académica tenha perdido essa dimensão. E... estou a lembrar-me... esses jogadores nem sequer eram inferiores aos outros. Eu não estou a dizer isto para que a Académica, coitadinha, acabe a jogar nos campeonatos distritais. Não...

O Manuel António era “Bola de Prata”...
Sim... O Maló era um dos grandes guarda-redes... Eram todos bons! Está provado: Florentino Pérez fez uma equipa de milhões e não ganhou mais por isso; é uma equipa que não é equipa, são “primas-donas”, são pessoas que andam a olhar para o próprio umbigo. Com narcisismo não se faz uma equipa.

José Mourinho tem sido simpático

Por isso é que o seu discípulo José Mourinho não quer “estrelas” na equipa...
Pois, ele é esperto. Mas eu nunca ensinei futebol a ninguém, ensinei outras coisas que ele diz que se aplicam ao futebol.

Continua a falar com ele todas a semanas?
Agora não, já não falo com ele há algum tempo. Ele tem a sua vida, eu tenho a minha... Venho agora dos Açores, ando de um lado para o outro... Mas de vez em quando falamos.

Ele tem sido muito simpático consigo: considera-o a pessoa que mais o influenciou na sua formação como técnico de futebol.
Ele tem sido muito simpático comigo.

Ou melhor, tem sido justo.
Não sei, não sei. Eu procuro não [aparecer muito]. Vou fazer 73 anos, já não tenho idade para exibicionismos pueris. Já não fica bem.

Já tem o nome da sua teoria gravado na fachada de diversas faculdades, tem um dos melhores treinadores do mundo a dizer que a pessoa que mais o marcou foi o Professor...
Há um outro que também tem muito contacto comigo, o Mariano Barreto. Está no Dínamo de Moscovo. Eu acredito muito nele. É uma pena ainda não lhe terem aberto portas, porque ele vai longe... Há ainda um outro, que foi meu assistente, que é um dos melhores escritores portugueses – o Gonçalo M. Tavares – que se doutorou há pouco na Faculdade de Motricidade Humana e fui o orientador da tese dele.

Vai ser também treinador de futebol?
Não, não tem nada a ver.

São os seus três “delfins”?
Dois no futebol e um na escrita. Mas há mais...

Académica pode ser um espaço diferente

Como vamos de Motricidade Humana pelo mundo fora?
As ideias que eu defendo aparecem como novas: o passar do físico à motricidade humana, à pessoa em movimento intencional. No Brasil há várias faculdades, em Portugal há vários cursos, em Espanha estão agora a nascer. E estão a começar a traduzir alguns textos meus para inglês, porque é fundamental. Há ideias que eu defendi há anos que agora se concretizam mesmo. Por exemplo, quando eu digo que não há educação física, mas sim educação de pessoas em movimento, queria acabar com a noção do homem-máquina.

O homem integral...
O homem integral em movimento. Eu julgo que a Académica, mesmo aquela Académica que começou com o Cândido de Oliveira (que não era bem um treinador de futebol e era treinador de futebol)...

... nos anos 50...
... nos anos 50, o Cândido que falava com os jogadores de vários aspectos de cultura, julgo que a Académica poderia voltar a ser assim. E criar um outro clima. Caso contrário, a Académica não tem razão para existir com o nome de Académica. Há uma tradição, a Académica nasceu de uma determinada maneira, embora eu não conheça bem a história. A Académica podia ser um anúncio de um novo futebol.

Novo comportamento, novos valores?
Novos valores. E eu, nisso, entrava. Era apaixonante. A Académica pode ser um espaço como não há. Mas... “não temos o Ronaldinho?”... Também aparecia!

Aos 73 anos, sente-se realizado? Já fez muita coisa...
Já fiz muita coisa. Mas não me sinto realizado. Há sempre hipóteses de fazer mais. Com as minhas fraquezas humanas (tenho a toda a hora a noção dos meus limites), nasci de gente muito pobre, trabalhei e estudei com gosto.

Aos 20 anos tinha a 4.ª classe...
Aos 22 anos tinha a 4.ª classe, depois comecei a estudar. Já trabalhava no Arsenal do Alfeite.

E foi por aí acima...
Fui por aí acima, a trabalhar, a estudar e na companhia da minha mulher, que foi uma grande companheira que eu nunca esquecerei. A vida familiar é fundamental.

José Maria Pedroto convidava-me para os estágios

Tem projectos?
Projectos há sempre. Eu penso como se tivesse 20 anos. Sinto isso.

Sente mesmo ou está a usar uma “frase feita”?
Sinto, sinto. Claro que do ponto de vista fisiológico, uma pessoa sente que a próstata não está boa, a gente tem doenças... [sorri] Uma pessoa chega à minha idade e sente que não é a mesma pessoa. Agora, quero escrever isto, fazer aquilo... continuo na mesma.

Então qual é o projecto que fervilha agora na sua cabeça?
Agora estou a escrever “Motricidade Humana – itinerários de um projecto”. Eu quero fazer a história da Motricidade Humana. Aquilo que pensei... Mas sou, acima do mais, um ensaísta e, como tal, estou sempre a escrever coisas, recebo muitos convites para ir aqui, ir ali...

Convite para Stamford Bridge, para ver jogar o Chelsea?...
Já tive, já tive, mas...

Não gosta do ambiente dos estádios ingleses?
Sim, mas não calhou ainda. O meu mundo é outro, sabe? Eu gosto muito de ver os jogos do meu Belenenses.

O seu mundo é o Restelo?
O meu mundo é o Restelo. Mas não é só isso... Eu sou presidente da parte universitária do Insituto Piaget, não tenho a vida tão livre como parece. Tenho obrigações. Para ir às conferências que me pedem, depois também não posso sair assim para dar um “salto” a Inglaterra.

O futebol nunca o chamou?
Não, não, não. A única pessoa que mais falou comigo, e que me deu a impressão de gostar de falar comigo, foi o José Maria Pedroto. É uma coisa interessante. Falávamos muito ao telefone. E até cheguei a ir para o estágio dos jogadores do FC Porto, cheguei a levar a minha mulher, o Pedroto levava a mulher dele, e eu falava com ele.

Qual era a sua função: aconselhá-lo?
Não, não. Eu nunca ensinei futebol a ninguém. O Pedroto, coisa curiosa, era um homem que sabia que não sabia. Uma coisa interessante... Era uma pessoa cursiosíssima, um indivíduo que gostava de saber e, então, gostava de me ouvir falar e levantava perguntas.

Sobre tudo?
Sim, sobre política, mesmo futebol. O Pedroto era muito interessante. Eu não sei se terá havido mais alguém no futebol com aquela curiosidade. Eu não conheci o Cândido de Oliveira, quem escreveu sobre ele foi o Homero Serpa...

Jogador tem de sentir que serve um ideal

O Homero chegou a ser treinador do Belenenses...
É uma situação curiosa. O Belenenses estava para descer de divisão e o Acácio Rosa, aí por 1969 ou 1970, foi buscar o pai do José Mourinho, que era nosso guarda-redes [Félix Mourinho], e o Homero Serpa, um jornalista, para orientarem a equipa. E o Belenenses não desceu de divisão! Isto deu-me muito que pensar, muito que pensar... É o homem que triunfa no treinador. O treinador triunfa se é, ou não é, homem. Isso é a força do José Mourinho. O líder é o grande treinador. Na alta competição, o líder é uma espécie de general; é evidente que tem de saber qualquer coisa de futebol... Tem de ser perspicaz, conhecer bem os seus jogadores. Mas isso quase todos sabem fazer, mas depois falta-lhes o resto: formar um grupo que saiba entrar em campo e ter objectivos. O jogador, acima de tudo, tem de entrar em campo e sentir que está a servir um ideal em que acredita.

O dinheiro?...
Não sei. Talvez até qualquer coisa de transcendente, mais do que o dinheiro. O jogador tem de entrar em campo sem pensar no dinheiro. É evidente que ele tem de viver com dinheiro, mas tem de ter mais qualquer coisa: o orgulho, o “vamos ganhar!”, o “tu és jogador de futebol e quanto melhor jogares mais serás conhecido”... É a transcendência, é a superação. O jogador tem de entrar em campo convencido que o faz ao serviço de um valor transcendente.

Será por isso que Scolari reza com os jogadores antes dos jogos?
No Brasil usa-se muito isso. No Brasil, o catolicismo entra no balneário. Ele [Scolari] pratica o catolicismo à sua maneira. Vai à missa.

Estamos bem entregues, com Scloari?
Não sei. Ele não faz menos do que outros têm feito. Não sei... Não conheço verdadeiramente o trabalho dele. Veja bem a facilidade com que chegámos à fase final do Campeonato do Mundo.

E vai correr bem?
Pode correr bem porque nós temos grandes jogadores de futebol.

Velhotes já, alguns...
O Figo é que é velho, o Cristiano tem 21.

Mário Campos foi dos maiores “extremos” de sempre

Frequenta os estádios?
Às vezes. Quando o meu amigo João Santos era vivo, ele costumava receber dois bilhetes e eu ia com ele, porque a mulher nunca ia. E houve outra fase da minha vida em que, de 15 em 15 dias, ia ao futebol. Olhe, há um rapaz, o Mário Campos, que foi dos maiores extremos-direitos que eu vi no futebol português, de sempre! Vi-o fazer exibições que nunca mais esqueci.

Bem, estamos a chegar ao fim da conversa...
Sabe uma coisa?... Gostava muito que o futebol pudesse ser um motor de transformação da sociedade. Com a força que tem, ser o gérmen de qualquer coisa...

Mas diz o contrário...
É verdade, o futebol actual reproduz e multiplica as taras da sociedade. Julgo que a Académica tinha condições invulgares para ser esse motor...

Mas o discurso mais ouvido é de que os tempos são outros e que é preciso ganhar jogos...
Ninguém está a dizer que não é preciso ganhar jogos. O jogador tem que se sentir homem de um tempo e tem de lutar para transformar esse tempo. Ele é jogador de futebol, com certeza. Mas mesmo como jogador de futebol pode fazer isso.

Isso supõe uma formação cultural do jogador...
Mais do que isso: toda a organização do clube tem de estar orientada nesse sentido. Tem de haver uma nova cultura, um novo discurso, tem de haver objectivos. Partindo daquilo que o clube é, transformá-lo, visando a transformação da própria sociedade. Os clubes devem preparar-se para não fazerem só bestas esplêndidas, mas para fazerem pessooas de bem. Acho que isto não é só retórica.

O que é que isso tem a ver com o futebol e os clubes...
Há valores sem os quais se torna impossível viver. Mesmo hoje, esses valores têm de enformar a sociedade. Dizem: “Ai isso era antigamente...”. Então nós, hoje, só devemos consumir, não podemos pensar?

Há meia dúzia de anos, a Académica entrou em Alvalade com uma tarja a afirmar “Não à co-incineração”. É este tipo de comportamentos que defende?
Claro, claro. É evidente que se eu estiver dentro de um clube que pensa de determinada maneira, eu também começo a pensar. Quando entramos numa igreja, sentimos qualquer coisa de diferente, agimos de maneira diferente.

E é um não-crente que está a falar...
Não, não. Eu sou cristão, profundamente cristão. A figura que eu mais admiro na História é Cristo. Jesus Cristo trouxe uma mensagem que põe Deus perto de nós. É esta a grande novidade do cristianismo, que S. Francisco de Assis interpretou de forma admirável. Onde está Deus?... No outro. A grande mensagem é esta: Deus está no nosso semelhante.


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Homem de vários mundos

Conheci o Professor Manuel Sérgio há cerca de 15 anos, por altura do I (e único) Curso de Auditores de Informação Desportiva. Durante vários meses, o Centro de Estágo da Cruz Quebrada era o destino, dois dias por semana.
Manuel Sérgio coordenava o curso e as noites de segunda-feira constituíam uma “oportunidade de ouro” de formação extra-curricular para quem, como eu, estava alojado no Jamor. Por vezes, ser da Província é uma vantagem em Lisboa...
Ficámos longas horas naqueles sofás. Um dia, deu-me boleia para Lisboa. O destino era Santa Apolónia. A certa altura, o convite: “Venha conhecer uma amiga minha!”.
Entrámos no Hotel Tivoli, na Avenida da Liberdade. À espera, para o chá da tarde, estava Beatriz Costa.
Feitas as apresentações, começaram os dois a conversar. Foram duas horas inesquecíveis - um diálogo ao mesmo tempo simples e profundo, entre duas pessoas simples, verdadeiras e cultas, deslumbradas com o mundo e a vida, um diálogo sem formalismos bacocos, a provar que todos temos algo para ensinar e para aprender.
Nunca mais esqueci aquele fim de tarde. Devo-lhe esse momento mágico.

M. M.




**** FRASES

O Desporto actual reproduz e multiplica as taras da sociedade

O Professor Queiró, mestre eminente de Direito, andava sempre com a Académica. Eu acho que nenhum mestre eminente de Direito anda hoje com a equipa da Associação Académica...

A Académica foi das equipas, em todo o mundo, que melhor soube reproduzir a ideia de que no futebol é possível existir um ideal. Esta Académica perdeu-se porquê?

A Académica podia ser um anúncio de um novo futebol.

O treinador triunfa se é, ou não é, homem. Isso é a força do José Mourinho. O líder é o grande treinador. Na alta competição, o líder é uma espécie de general; é evidente que tem de saber qualquer coisa de futebol...

O jogador de futebol tem de entrar em campo convencido que o faz ao serviço de um valor transcendente – é esse o segredo de José Mourinho.

Enquanto os nossos avós (desde a Idade Média...) nos deixaram igrejas, catedrais, nós vamos deixar campos de futebol, estádios. E a alguns até já lhes chamam catedrais.