quinta-feira, 11 de outubro de 2007

Faustito, até já

Por Lino Vinhal

Estranho destino este. Estranha perfeição a deste mundo imperfeito. Além, aí algures neste jornal, escrevo sobre a morte de um ex-colaborador, amigo exemplar. Aqui tenho que redigir uma nota sobre a morte de Fausto Correia, intempestivamente acontecida ao princípio da manhã de terça-feira. O “Faustito”, como o tratava há mais de 30 anos, deixou-se vencer pela morte, ele que em tudo o mais era um lutador destemido. Homem público, um homem e um político em peregrinação constante, teve dificuldade, ao longo das últimas dezenas de anos, em se refugiar dos excessos a que a vida social tão activa quanto a dele pode conduzir. Vida activa no exercício das funções variadas que foi desempenhando, mais activa ainda por ser um homem bom, um cavalheiro distinto, um amigo sincero, um verdadeiro homem de Coimbra que, por não saber dizer não nem às pessoas nem às causas, era uma porta nunca fechada sempre que o solicitavam. Por não saber dizer não, por não saber negar a ajuda solicitada por alguém, por não recusar nunca uma causa que tivesse em pano de fundo Coimbra trajando o seu fato domingueiro de ética revestido, Fausto Correia, que se sabia doente, preferiu morrer lutando, a viver desistindo.

Coimbra perdeu um dos seus homens bons. Diria até, perdeu um dos seus melhores. Traído pelo coração generoso, estou certo que morreu como gostaria de ter morrido. No seu posto de trabalho, assumindo-se como se a vida fosse infinita, caiu de pé, com a certeza que em todos nós deixa um rasto de mágoa, de admiração, de profunda saudade. Fomos contemporâneos. Em tudo. Desde a Faculdade ao Jornalismo. Do político sério ao observador atento. Unidos pelos mesmos ideais. Comprometidos com Coimbra. Servidores da verdade. Ele foi longe, eu fiquei-me por aqui. À distância de um contacto intermediado pela fiel secretária, aquela Gracinda que era já uma parte do próprio Fausto Correia. Por onde passou, pelas causas por que se bateu, pelos ideais por que lutou, foi sempre um honrado cidadão e combatente, adversário leal e frontal, companheiro das boas e das más horas. Por onde passou, assumiu-se sempre como um homem de Coimbra, terra que amava e conhecia como poucos, deixando atrás de si um rasto de respeito e admiração. Amigo íntimo de Torga, de Mário Soares, António Guterres, António Campos, António Arnaut e outros mais, trocou uma dúzia de anos de vida pela entrega aos outros e às causas em que acreditava e que assumia como suas. A morrer, ele que da vida tanto gostava, de certeza que preferia morrer agora, lutando, do que acomodando-se atrás das trincheiras onde se refugiam os políticos sem dimensão. E ele que me desculpe, lá longe no lugar para onde foi e onde só mora o pensamento e a imaginação, eu também preferi que morresse agora, a que o fizesse depois de vender ao desbarato a integridade que sempre lhe conheci. Coisa que ele nunca faria, eu sei. Mas para resistir iria sofrer muito mais, logo ele que já pagara cara a coragem de muitas vezes dizer “eu não vou por aí”.

Muitos de nós perdemos uma pessoa de bem. A sua família, muitas vezes sacrificada pela sua dedicação às causas do mundo, aguardava ansiosa a hora da compensação. Que não virá em forma de tempo. Mas que está aí na dor profunda sentida por milhares e milhares de pessoas, pelo luto de que Coimbra se vestiu logo soube da sua morte, com as pessoas a olhar o chão, como que em busca de um porquê que o destino reserva sempre para si. Estranha e escassa compensação, eu sei, quando analisada sobre o corpo quente de quem partiu. Mas o tempo dirá o quanto a honra valerá como lenitivo compensador, sobretudo para a família daqueles que a viver, se recusariam a fazê-lo sem ela.

Perdi um dos grandes amigos da minha vida, logo eu que há anos me compatibilizei com a morte, como se ela da própria vida fizesse parte. Mas ninguém rouba a vez a ninguém. O Fausto foi na sua vez, que não no seu tempo. Mas viveu o suficiente para deixar em mim uma mágoa que, de mãos dadas com outras mágoas, manterá dentro da minha alma o peregrino rebelde que sempre fui. Como eu gostaria que Deus reservasse para mim destino idêntico: morrer de pé, de mãos dadas com a lealdade e a integridade! Para quem pensa que a vida para além da morte não vai além da memória e da saudade dos que ficam, a mais não posso aspirar.

Faustito, até já.

2 comentários:

Mário Oliveira disse...

Que mais se pode dizer de um Homem, como o foi Fausto Correia, para além daquilo que o teu coração escreveu neste delicioso apontamento.
Obrigado Mário.

Mário Oliveira disse...

Só agora reparei que o artigo em causa é de Lino Vinhal - mas a intenção é que conta
Abraço, Mário